Policiais denunciados praticaram torturas com asfixia e choques, diz MPF



A denúncia oferecida pelo ministério público federal (MPF), em junho deste ano, contra 19 investigados na operação vereda, revela detalhes inquietantes sobre a suposta conduta de um grupo criminoso formado por policiais civis da divisão de combate ao tráfico de drogas (DCTD), da polícia civil do ceará (PCCE). Segundo o órgão, inspetores realizavam roubos e extorsões com o emprego de tortura, com o uso recorrente de sacos plásticos para asfixiar a vítima e choques elétricos. Os fatos foram detalhados em depoimentos de pelo menos 12 vítimas.
O monitoramento telefônico do grupo suspeito revelou um esquema complexo. Os policiais civis recrutavam pessoas com extensa ficha criminal - envolvidas com homicídios, tráfico de drogas e roubos - para exercerem a função de informantes. Elas ganhavam a confiança de outros criminosos e combinavam a compra de drogas. Os agentes de segurança eram informados sobre as negociações e se dirigiam junto dos informantes, com dinheiro falso, para o local combinado para a entrega de entorpecentes.
Ao chegarem, os policiais e os informantes abordavam o traficante, subtraíam a droga e outros valores. Na sequência, com ameaças e torturas, eles obrigavam o criminoso a entregar mais produtos valiosos. Por fim, os policiais formalizavam a apreensão de quantidade inferior de ilícitos e desviavam a diferença para revenda; ou sequer registravam a ocorrência e ficavam com toda a substância apreendida. Parte dos valores obtidos na empreitada criminosa pelos policiais era utilizada para remunerar os informantes.
Colaboração premiada
A teia de crimes foi descoberta depois da colaboração premiada do português carlos miguel de oliveira pinheiro, preso pela venda ilegal de anabolizantes. Entre 2015 e 2016, ele teria sido torturado por inspetores da dctd em três ocasiões.
Conforme o mpf, em 18 de maio de 2015, os inspetores antônio chaves pinto júnior (o ´aj´), josé audízio soares júnior e thales cardoso pinheiro, juntos do policial rodoviário federal victor rebouças holanda, invadiram o apartamento do português, no bairro meireles, em fortaleza, e roubaram anabolizantes, perfumes, celulares e r$ 90 mil em dinheiro, mediante ameaças com armas de fogo e tortura com tapas. O grupo ainda tentou extorquir mais r$15 mil de carlos para evitar o flagrante, mas ele disse que não tinha dinheiro.
Cinco meses depois, em 18 de outubro, carlos miguel teria sido novamente violentado, desta vez pelos inspetores fábio oliveira benevides e raimundo nonato nogueira júnior. Já em 2 de junho de 2016, seis policiais civis - aj, antônio henrique, francisco alex, rafael domingues, joão filipe e allan wagner - teriam retornado ao apartamento do português para torturá-lo mais uma vez.
Organização
A investigação da polícia federal verificou, no ano passado, a continuidade das atividades criminosas com modus operandi similar, mas com aperfeiçoamento no uso de informantes. Situações que envolveram inspetores, que tinham o intuito de se apropriar de drogas, foram registradas na favela baixa pau, na praia de iracema, em julho; no alto da balança e no padre andrade, também em fortaleza, e no eusébio, em agosto daquele ano.
Para o mpf, os crimes "dão os contornos da atuação de uma organização criminosa que se encontrava instalada na dctd", entre 2015 e 2017, "que emprega arma de fogo, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, que se valia da condição de policial civil de alguns de seus integrantes com o objetivo de obter vantagens financeiras, mediante a prática de torturas, extorsões, roubos e tráfico de drogas".
Na divisão de tarefas, o inspetor ´aj´ exerceria a função financeira, com atuação na negociação, no armazenamento e no repasse de valores da organização criminosa, bem como agindo em trâmites do tráfico de drogas. No dia do cumprimento de mandado de busca e apreensão, inclusive, quase r$340 mil foram localizados na residência dele.

Já o inspetor rafael domingues teria a incumbência de adquirir e guardar as notas falsas que seriam levadas nas simulações de compra de entorpecentes. José audízio e fábio benevides são apontados como torturadores do grupo. Antônio henrique, francisco alex e antônio maciel seriam responsáveis por recrutar e negociar diretamente com os informantes.
O informante josé abdon é considerado pelo mpf como uma espécie de líder dentre as pessoas que tinham essa função. Ele relatou que recebia de r$ 300 a r$ 700 dos policiais civis com os quais se relacionava no esquema criminoso. O irmão dele, marcos vinicios, o ´gordinho´, também estaria envolvido na teia. E francisco antônio duarte, o ´dudu´, servia de elo com outros informantes.
Os 19 investigados foram acusados pelo ministério público federal, conforme a atuação individual, pelos crimes de roubo, extorsão, tortura, abuso de autoridade, violação de domicílio e organização criminosa e favorecimento pessoal. As defesas dos policiais civis, do policial rodoviário federal e dos supostos informantes citados não foram encontradas pela reportagem.
Instrução do caso começa em setembro
Em decisão proferida no último dia 13 de agosto, a Justiça Federal no Ceará marcou o início das audiências de instrução e julgamento do caso para o próximo dia 17 de setembro. Até novembro deste ano, devem ser ouvidas testemunhas de acusação e defesa e os denunciados. Após as oitivas, o juiz pode ou não receber a denúncia. Caso rejeite, o processo é arquivado e o Ministério Público Federal pode recorrer para uma Turma Recursal.
Na semana passada, o juiz federal Danilo Dias Vasconcelos de Almeida rejeitou argumentos das defesas e manteve as denúncias contra 11 investigados na Operação Vereda: a delegada Patrícia Bezerra de Souza; os policiais civis Antônio Chaves Pinto Júnior, José Audízio Soares Júnior, Raimundo Nonato Nogueira Júnior, Antônio Henrique Gomes de Araújo, Francisco Alex de Souza, Rafael de Oliveira Domingues, Antônio Márcio do Nascimento Maciel, Allan Wagner de Oliveira e João Filipe de Araújo Sampaio Leite; e o informante Eduardo Pinheiro da Silva Júnior.
Outros delegados
Já os outros delegados da DCTD, investigados na Operação Vereda, Anna Cláudia Nery e Lucas Aragão, não foram denunciados pelo MPF e receberam a proposta de transação penal. O órgão acusatório entendeu que a dupla cometeu crime de menor potencial ofensivo.
No último dia 14 de agosto, Lucas Aragão se manifestou positivamente pela redução do valor da penalidade para R$ 20 mil. O valor é uma prestação pecuniária que deverá ser destinada ao Instituto do Câncer do Ceará, em dez prestações mensais de R$ 2 mil, a partir do próximo mês de setembro.
Já Anna Cláudia recusou a proposta de transação penal e a suspensão do processo criminal, com o objetivo de comprovar inocência. Ela alegou que o acordo violaria seus princípios morais e preferiu continuar a se defender legalmente no processo.
Delegada teria ciência dos crimes, mas não evitou
O Ministério Público Federal crê que a manutenção dessas práticas criminosas, de "caráter ostensivo e violento", não poderia prosseguir sem a conivência ou a proteção da chefia da Divisão de Combate ao Tráfico de Drogas. Conforme a denúncia, a delegada Patrícia Bezerra de Souza não integrava diretamente a organização, mas "tinha ciência da conduta criminosa de seus policiais, a quem buscava proteger cegamente". A conclusão foi feita com base na análise de provas, como diálogos dos inspetores interceptados com autorização da Justiça, recebimento de denúncias não apuradas pela Especializada e testemunhos obtidos no inquérito da Polícia Federal.
A intenção da delegada não era obter vantagens financeiras, mas se manter na titularidade da Divisão e fomentar a apreensão de drogas, ainda que por técnicas criminosas, conforme o MPF. Em janeiro deste ano, mais de duas toneladas de drogas sem correspondência a procedimentos policiais foram localizadas na DCTD, "tornando a própria Divisão um local de armazenamento de substâncias ilícitas sem registro policial".
A denúncia afirma também que a conduta dos inspetores era denunciada pelas vítimas através da Ouvidoria e chegavam ao conhecimento de Patrícia Bezerra, mas ela negava a existência de irregularidades no trabalho e se utilizava de influência para interferir nas investigações da Controladoria Geral de Disciplina (CGD) contra os policiais.
Defesa
A defesa de Patrícia Bezerra, representada pelos advogados Leandro Vasques e Holanda Segundo, respondeu à acusação formalmente. Com relação às toneladas de drogas apreendidas, a delegada informou que assumiu a direção da Divisão apenas em janeiro de 2017, "o que a torna alheia aos atos de gestão daquele módulo policial no período anterior".
A investigada enfatiza que o material acumulado vem de outras gestões da Especializada e o que foi apreendido a partir do dia que ela assumiu o cargo de chefia "foi devidamente catalogado e vinculado ao seu respectivo procedimento". A incineração dos entorpecentes era requerida à autoridade judicial apenas quando o relatório do caso estava concluído.
Sobre a acusação de que Patrícia tentou embaraçar as apurações contra os policiais, a defesa alegou que ela não tinha conhecimento e não "tinha o objetivo de burlar, impedir, obstaculizar ou interferir nas investigações perpetradas em desfavor de seus subordinados".
Fonte: Diário do Nordeste




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